Na ponta da língua e do dedo. Devaneios, críticas e reportagens.

sábado, 25 de setembro de 2010

Um olhar às histórias invisíveis

Resenha do livro "A vida que ninguém vê"

Todos têm uma história a ser contada. Todos. De um velho colecionador de objetos peculiares a uma mulher apaixonada pelo vereador de Porto Alegre. Aos olhos de Eliane Brum, o mundo se desenha intrigante, dramático, metafórico. Em “A vida que ninguém vê”, a autora se apropria de histórias da vida real, que passariam despercebidas à maioria das pessoas, e as transforma em narrativas quase literárias.

As crônicas-reportagens de Brum são recheadas de metáforas, frases de efeito e drama. Talvez por isso, soem, em alguns momentos, fictícias. Em “O cativeiro”, pág 52, o zoológico torna-se um palco sombrio, triste. A autora retrata os sentimentos dos animais numa grande prosopopeia. Esse afastamento da realidade incomoda em alguns momentos do livro, mas transbordam o sentimento e a percepção da autora sobre o mundo.

A riqueza de detalhes torna Eliane onipresente. Ela abusa das caracterizações exarcebadas, quase naturalistas, das situações. “O atrito da mão dobrada sobre o papel deixou os dedos em carne viva. Os primeiros cadernos tinham letras ensanguentadas, palavras feridas. Os primeiros cadernos de Eva foram escritos a sangue”, trecho de “Eva contra as almas deformadas”. As crônicas, geralmente sobre pessoas excluídas, são cheias de dramas levados ao extremo. Como em “O Chorador”, a história de um homem que vai a todos os funerais da cidade chorar os mortos. Apesar de não ser uma história em si dramática, Eliane faz questão de trazer o paradoxo entre vida e morte, exaltando a tragédia. “Talvez tudo que o Tierre espere é que, quando também ele se for, Quaraí lhe dê na morte a importância que não lhe deu na vida”.

O texto da jornalista flui. As frases curtas vão se misturando e imergem o leitor numa viagem pelas histórias sempre bem contadas. Ao utilizar entrevistas e diálogos dentro das crônicas, criam-se os efeitos de dia-a-dia e identificação. Desperta-se os leitores ao exercício da observação.

Dentre tantas boas histórias, destaco “O colecionador de almas sobradas”. Eliane mostra a obsessão de um senhor por objetos comuns, muitos sem utilidade. Como algumas tribos indígenas que dotam os objetos de espíritos, Oscar Kulemkamp credita aos bancos, fotos de outrem e embalagens valor sentimental. Um transtorno obsessivo compulsivo transforma-se numa história mágica e sensível.

“A vida que ninguém vê” é essencial para jornalistas que prezem por um bom estilo de escrita e para pessoas que desejem ver o mundo através de vieses quase sempre ocultados. Um sopro de sensibilidade a uma sociedade enrijecida.

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